segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Terezinha Guilhermina, a cega mais rápida do mundo


Pedro Guilhermino puxava a carroça carregada de sacos de ração para cavalo quando ouviu a mulher gemer. Ela estava na parte de trás do veículo, que se convertera no principal ganha pão do carroceiro, quando sentiu as primeiras contrações. “Vai nascer aqui mesmo”, pensou Pedro. Ele acomodou a esposa sobre os sacos de ração, tentou acalmá-la e só fez esperar. A criança veio logo. Era uma bela menina, chorona como todas as outras. Homem resoluto, Pedro pegou a faca de cortar pão, puxou o cordão umbilical e separou mãe e filha. No dia 18 de setembro de 1978, nascia em Betim, na Grande Belo Horizonte, aquela que se tornaria uma das atletas mais vitoriosas da história do esporte brasileiro. O bebê, o décimo de Pedro e Terezinha, ganhou o nome da mãe e o sobrenome do pai. Sabe-se lá por quê, Guilhermino virou Guilhermina. O registro foi feito com atraso, no dia 3 de outubro de 1978, como é comum nas famílias muito pobres. Dali por diante, nada seria fácil na vida de Terezinha Guilhermina.


Terezinha e quatro de seus irmãos têm retinose pigmentar, doença que consiste na degeneração gradativa das células da retina. Ela ficou cega aos poucos, até não enxergar mais nada por volta dos 30 anos. Segundo os médicos, isso aconteceu porque os pais são primos de primeiro grau. O caso mais grave da família foi o de Terezinha. É a única que não vê coisa alguma.

Nem sempre foi assim. Criança, vivia tropeçando nos móveis e objetos, mas ninguém suspeitava que poderia ser uma deficiência de visão. “Eu achava que todo mundo enxergava igual a mim”, diz. Quando a mãe pedia para varrer a casa, Terezinha tirava o cabo da vassoura e se ajoelhava. Era o único jeito de enxergar a sujeira. Na escola, disseram que tinha miopia. O oftalmologista mandou pôr óculos de grau, mas não adiantou. A menina praticamente só via vultos. Só depois de repetir duas vezes a primeira série é que uma professora percebeu que Terezinha não conseguia ler o que estava escrito na lousa e decidiu ditar a lição para ela. Depois disso, Terezinha deslanchou.


Terezinha e quatro de seus irmãos têm retinose pigmentar, doença degenerativa das células da retina. Ela ficou cega aos poucos, até não enxergar mais nada por volta dos 30 anos

Terezinha e quatro de seus irmãos têm retinose pigmentar, doença degenerativa das células da retina. Ela ficou cega aos poucos, até não enxergar mais nada por volta dos 30 anos

Até os 16 anos, a família não tinha noção da gravidade da doença. Um dia, foram para a Santa Casa de Betim e o mundo de Terezinha desabou. “Você só tem 5% de visão”, disse a médica. “Com o tempo, vai perder o pouco que resta.” Terezinha se lembra até hoje. “Eu achava que tinha uns 50%”, diz. “Quando tiraram o zero, foi muito difícil.” Mas ela não é de se dobrar. Já havia, afinal de contas, passado por muita coisa. A mãe morreu quando Terezinha tinha 9 anos. Três meses depois, o pai saiu de casa. Aos 10, apanhava na escola de uma menina mais velha. “Eu tinha que correr para fugir dela”, diz. “Foi aí que descobri que podia ser atleta.” Sem o pai e a mãe em casa, o irmão Ibério, o mais velho, assumiu as responsabilidades da família.

Sempre duvidaram de Terezinha. Quando foi se matricular em um curso técnico de administração, a diretora da escola disse que jamais conseguiria se formar, pois seria preciso usar calculadora e fazer balancetes, algo que a mulher julgou improvável para uma cega. Terezinha completou o curso aos 21 anos – e só com notas boas. Depois, arranjou um estágio na área. “Eu fui muito subestimada”, diz. “Mas sempre consegui fazer tudo o que quis.”

“QUANDO GANHEI R$ 80 NUMA CORRIDA,
ME SENTI MILIONÁRIA. A PRIMEIRA
COISA QUE FIZ FOI COMPRAR IOGURTE.
NUNCA TINHA PROVADO UM”

Em 2000, aos 22 anos, se inscreveu em uma corrida para deficientes visuais organizada pela prefeitura de Betim. Treinou com o tênis emprestado pelos irmãos, que era alguns números maior, e pegou dinheiro emprestado para comprar um par novo.

De tão ordinário, o tênis se desfez durante a prova e ela terminou a competição com um pé descalço. Pouco depois, ficou em segundo lugar em uma corrida de rua, o suficiente para ganhar o prêmio de R$ 80. “Eu me senti milionária naquele dia.”, diz.

Com o guia guilherme santana, terezinha ganhou dois ouros paraolímpicos

“A primeira coisa que fiz foi comprar iogurte no supermercado. Eu nunca tinha provado um.” Era evidente que a garota tinha talento e ela acabou sendo convidada para treinar em um clube de Belo Horizonte. Logo nos primeiros dias, sentiu uma ponta de desprezo dos técnicos. “Vocês me treinam para ser recordista mundial?”, perguntou. “Eu quero ser a melhor do mundo.” Ela jamais esqueceria a resposta de um dos treinadores. “As meninas que competem com você são muito boas”, disse o sujeito. “É a mesma coisa que comparar um fusca e um avião. Você é o fusca.” Se tivesse dado ouvidos, Terezinha não teria ido tão longe.

A ascensão foi rápida. A primeira competição internacional foi em 2001, um campeonato panamericano para deficientes visuais na Carolina do Sul, nos Estados Unidos. Terezinha competiu na categoria T12, para atletas com alguma visão, e faturou três pratas. Em 2004, foi à Paraolimpíada de Atenas, que lhe valeu um bronze nos 400 metros. A essa altura, a retinose pigmentar tinha avançado a tal ponto que Terezinha foi obrigada a trocar de categoria, para a T11, em que o atleta é completamente cego. A mudança não é tão simples assim. A partir desse momento, ela teria que aprender a correr com um guia. Seria preciso encontrar alguém tão veloz quanto ela e, nos treinamentos e competições, desenvolver um sincronismo perfeito.

Em 2005, Terezinha começou a treinar com o guia Jorge Luiz Souza, o Chocolate. Juntos, eles conquistariam dois ouros na Paraolimpíada de Pequim-2008, nos 100 e 400 metros. Por uma dessas coincidências inacreditáveis, Chocolate abandonou a parceria porque um problema neurológico afetou a sua visão. Hoje em dia, ele próprio é um atleta paraolímpico. Desde 2010, Terezinha está com Guilherme Santana, um corredor bastante veloz. Sua melhor marca individual nos 100 metros rasos é 10s60, muito perto do recorde brasileiro da distância, que é de 10s cravados, obtida por Robson Caetano em 1988.

Com um guia de alta velocidade, Terezinha começou a melhorar as suas marcas. O auge se deu na Paraolimpíada de Londres-2012, que também ficou marcada por uma derrota da dupla. Após conquistarem a medalha de ouro nos 200 metros, eles definiram como o próximo objetivo o título nos 400. Pouco antes da largada, Guilherme sentiu uma fisgada na perna e avisou a companheira. Mesmo assim, decidiram seguir em frente. Na altura dos 120 metros, Guilherme soltou a corda que unia os dois e desabou. “O estádio inteiro fez um barulho ensurdecedor”, diz Terezinha. Sem a ajuda do parceiro, Terezinha decidiu se jogar no chão. Ela se levantou, procurou Guilherme e o ajudou a recuperar a compostura. Juntos, completaram a prova em último lugar, numa demonstração de elevado espírito olímpico.

03-02

Naquele dia, eles jantaram juntos, mas não conseguiram tocar no assunto. Decidiram, movidos pelo instinto de sobrevivência, deixar para lá. “Eu perdoei o Guilherme”, diz Terezinha. “Um guia como ele vale mais do que qualquer medalha.” A dupla também não tinha muito tempo para lamúrias. Faltava ainda a prova mais nobre, os 100 metros rasos. Enquanto Guilherme fazia fisioterapia, Terezinha imaginava o que fazer para mostrar que a queda nos 400 metros não afetara a dupla. Resolveu que iria para a pista mais bonita do que nunca. Antes da prova, se maquiou, fez tatuagens (daquelas que dá para tirar depois), escolheu uma venda cheia de pedras coloridas e prendeu o cabelo com dois rabos de cavalo. A ideia, diz, era passar a mensagem de que estava bem. A tática funcionou. A dupla faturou o ouro com facilidade e quebrou o recorde mundial da distância, com o tempo de 12s01. A marca valeu a Terezinha o ingresso no Guiness Book, que se referiu a ela como a cega mais rápida do mundo.

Terezinha chegará ao Rio com 34 anos, no auge da forma para uma velocista paraolímpica. É favorita para levar 3 ouros, nos 100, 200 e 400. Ela admite que está num dos melhores momentos da vida, depois de passar por tanta coisa. Em 2013, sofreu com a morte do pai, por AVC. “A Terezinha sempre ligava para o pai antes das competições”, diz o guia Guilherme Santana. “Ela era muito apegada. Foi difícil dar a notícia.” Hoje em dia, Terezinha mora com a irmã Evânia em Maringá, em um apartamento de três quartos no segundo andar de um prédio antigo. A irmã é como se fosse os olhos de Terezinha. Evânia faz as maquiagens preferidas da corredora. Para diferenciar batons escuros dos claros, faz marcações com fita crepe. Embora cega, Terezinha diz que adora cores. Uma em especial: rosa. “Imagino que seja a cor mais vibrante do planeta”, diz. Para a produção fotográfica desta reportagem, a atleta chegou ao estúdio com os vastos cabelos tingidos na sua cor preferida. “Já basta eu estar no escuro”, diz. “Quero que as pessoas me vejam alegre.”

Fotos: Christian Gaul
Produção: Cintia Sanchez
Por Ludmilla Amaral
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