A vida toda Maria Nazaré de Almeida Souza gostou de deslizar pelos rios da zona rural de Itaituba, no Pará. Olhos puxados da avó indígena, cabelo longo e preto, ela mesmo conduzia o barco de madeira da família. Gostava de sentir o vento no rosto e olhar a floresta refletida no espelho d’água dos igarapés, os pequenos e calmos rios da Amazônia, um labirinto de água que sempre lhe proveu sustento com peixes, terra fértil para plantar mandioca e correnteza para transportar e vender a farinha. Nazaré cresceu neste cenário pobre de recursos financeiros, mas luxuriante em recursos naturais. E foi nele que conheceu o horror.
O acidente que será descrito no próximo parágrafo é uma das mais brutas violências a mutilar o corpo das mulheres na região norte do país. Parece coisa de um passado distante, mas só o hospital Santa Casa de Belém atendeu 190 vítimas nos últimos sete anos. Elas são todas ribeirinhas, mulheres que vivem às margens dos rios e dos seus direitos, por isso a violência não recebe a atenção que deveria do Estado e da mídia – o que agrava as sequelas. Em respeito a quem não lida bem com sangue, faço um alerta: pule o próximo parágrafo. É preciso descrever o horror vivido por Nazaré e tantas outras para que se tenha a dimensão do problema.
Eram seis da manhã quando Nazaré dirigia o barco em direção à casa de um parente, o marido ia sentado na dianteira. Ela não notou quando o vento desmanchou o coque do seu cabelo e soltou suas longas mechas. Sentiu um tranco e ouviu um estouro vindo do motor. Caída no chão da embarcação, Nazaré só percebeu que havia algo de muito errado no seu corpo quando ouviu os gritos do marido. Passou a mão na cabeça e o cabelo não estava lá. O motor do barco puxara os fios soltos e arrancara metade do seu couro cabeludo. Nazaré tinha o corpo coberto em sangue e não entendeu porque, mas estava sem a blusa. Só mais tarde descobriu que, ao puxar o couro do cabelo, o motor arrancara também grande parte da pele de suas costas. Sua visão escureceu e ela achou que iria desmaiar, mas na verdade seus olhos estavam cobertos pela pele de sua própria testa, que se desprendeu e pendia sobre sua face.
Ela não sentia dor, apenas medo. “O medo veio que nem uma queimação por dentro, me deu uma vontade de pular pra dentro do rio”. Com ajuda de outro barco, foram rebocados até sua casa, onde sua mãe e seus filhos tiveram a mesma reação do marido: gritos. Ninguém sabia o que fazer. Nazaré correu sozinha para o espelho e não se deixou cair quando viu o reflexo desfigurado. Enquanto a família chorava do lado de fora, ela enrolou uma toalha na cabeça, pegou uma calcinha e uma muda de roupa e correu para a frente da casa: “Sei que vou morrer porque vocês não estão fazendo nada por mim. Mas se me deixarem aqui eu vou morrer à míngua”. A família saltou para tirar seu cabelo do motor e faze-lo funcionar de novo.
Depois de uma hora no barco para chegar à sede de Itaituba, Nazaré descobriu que sobrevivera ao horror do acidente para viver o horror do tratamento. Isso tudo aconteceu em 1991, quando ela tinha 33 anos. Nessa época, não havia uma equipe médica preparada para atender seu caso. Ela passou dez dias na enfermaria e foi enviada para casa de uma parente na cidade. Durante três meses, voltava semanalmente ao hospital para fazer o curativo na cabeça e nas costas. Nunca teve consulta com um médico, nunca foi submetida a cirurgia plástica. Foi liberada para voltar ao interior quando o osso de sua cabeça ainda estava exposto.
Nazaré passou a cuidar da sua saúde com o que tinha disponível. Ao invés do soro, cozinhava casca de caju e usava a água para lavar a cabeça antes de trocar o curativo. Depois passava pomada de andiroba (óleo extraído da semente da árvore que leva o mesmo nome) e banha extraída do couro de sucuri – substâncias conhecidas como cicatrizantes naturais.
Para aplacar as dores, tomava “de tudo que o povo trazia”: ervas, analgésicos, anti-inflamatórios, antibióticos. “Devo uma dívida enorme pra comunidade, eles faziam festa, assavam galinha, tudo pra arrecadar remédio pra mim”, ela lembra. Assim, sem supervisão médica e à sorte da generosidade alheia, uma fina camada de pele formou-se sobre sua cabeça, tão delicada que uma leve batida é suficiente para rompe-la.
Apenas em 2008, quando Nazaré já estava nessa luta há 17 anos, o hospital da Fundação Santa Casa lançou um atendimento especializado para mulheres que passaram o mesmo que ela. Em 2010, na sua primeira consulta com um médico, ouviu que era “uma mulher de sorte” por sobreviver sem os cuidados adequados. Ela foi então apresentada ao que hoje é o tratamento de ponta da rede pública do país. Primeiro, o transplante da pele das coxas para a cabeça, uma solução que cria outro problema, a cicatriz na perna, e está longe de alcançar um bom resultado visual já que a pele transplantada pode escurecer.
Uma segunda etapa do tratamento é o expansor, uma bolsa de silicone introduzida cirurgicamente por dentro do couro cabeludo restante para estica-lo e reduzir a área descoberta. O expansor é a maior esperança de Nazaré voltar a ter o cabelo longo e solto, característica importante da identidade das ribeirinhas. Por isso ela suporta as dores excruciantes do tratamento. A bolsa de silicone estica o couro cabeludo e a pele do rosto e do pescoço. São puxões e beliscadas que fazem Nazaré passar as noites em claro durante meses.
Apesar do avanço no atendimento prestado pela Santa Casa de Belém, o cuidado a essas mulheres ainda sofre de muitas carências. Nem sempre há equipamentos básicos como as placas industrializadas, necessárias para fazer os curativos. Quando falta esse material, as mulheres são submetidas ao procedimento à moda antiga, com gazes e esparadrapos que causam dor e abrem novas feridas.
Durante minha visita ao Espaço Acolher, casa onde Nazaré e as outras pacientes ficam hospedadas com suas acompanhantes durante os tratamentos, uma delas lançou uma pergunta provocadora: “se já tem tanto remédio e tratamento pros homens carecas, porque não buscam um jeito pro nosso caso também?”. A queda de cabelo é um problema incomparável ao escalpelamento, mas só tem solução porque a indústria farmacêutica investe pesado no tratamento. O que determina a atenção dedicada pelas empresas a certo grupo de pacientes não é a urgência médica, mas o fator monetário: quem pode pagar. Como vivemos num mundo em que cobrar sensibilidade ou senso de cidadania de empresas privadas é heresia, resta ao estado a responsabilidade de investir em pesquisas e profissionais na busca por tratamentos mais avançados e menos cruéis para essas mulheres. Mas os governantes também não são uma classe sensibilizada com as urgências da população ribeirinha.
Os peritos públicos consideram que as sequelas das mulheres escalpeladas é um problema “estético”. Usando esse argumento, negaram os diversos pedidos dos profissionais da assistência social para que as vítimas recebam ajuda financeira para sobreviverem na sua comunidade de origem. “Eles dizem ‘se elas têm braços e pernas, por que não podem trabalhar?’ Nós explicamos que elas têm sequelas graves, como dor de cabeça crônica, dores quando abaixam a cabeça e não podem ficar no sol. É difícil encontrar atividades nas comunidades que não envolvam ficar no sol”, afirma Socorro Ruivo, enfermeira que coordena o Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento da Santa Casa. Há mulheres que perdem parte da visão e da audição. Só na lista da Santa Casa do Pará, há 59 mulheres escalpeladas esperando a prótese que substitui a orelha.
Nazaré nunca mais pode plantar mandioca ou fazer farinha, a pele cicatrizada inflama quando ela se aproxima de altas temperaturas. Ela sabe disso porque, teimosa, insistiu em voltar a trabalhar diversas vezes depois do acidente. Mas não teve jeito, teve que deixar sua casa no interior. Hoje mora na cidade de Santarém, onde costura roupas e, quando as dores permitem, faz bicos como doméstica. Ela mesmo faz seus chapéus, tem vários modelos, mas sua vontade mesmo era jogar todos eles fora e cultivar o cabelo comprido até a cintura. Muitos que moram nas cidades desprezam a vida simples de quem vive na beira do rio. Para Nazaré, esse é o cenário e a identidade que ela sonha reconquistar.
fonte:http://br.noticias.yahoo.com/blogs/3-por-4/nazar%C3%A9-o-rio-e-o-horror-172015047.html
Por Ana Aranha | Reportagem 3 por 4
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