sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Após um ano, 90 sobreviventes da Kiss ainda preocupam médicos

Pacientes são acompanhados toda semana em Santa Maria e Porto Alegre.
Bárbara Felipeto encontrou na gravidez motivos para superar o trauma.

Pacientes como Paula Fensterseifer ainda recebem acompanhamento médico no Hospital Universitário de Santa Maria, um ano após a tragédia que matou 242 pessoas. A fisioterapeuta Anna Ouriques é quem atende a jovem (Foto: Luiza Carneiro/G1)

Como uma árvore que possui galhos finos e altos, quase escondidos, o pulmão de pelo menos 90 sobreviventes do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, ainda tem áreas intocadas e infectadas pela fuligem da fumaça tóxica. Essas dezenas de pacientes continuam a preocupar profissionais dos centros de medicina do Rio Grande do Sul um ano após a tragédia que deixou 242 mortos e mais de 600 feridos. Por isso, equipes multidisciplinares se dividem para atender, tratar e evitar sequelas.
(Até sexta-feira, 24, o G1 conta como vivem sobreviventes e familiares de vítimas da boate Kiss e o que mudou na lei, nos hábitos e na vida das pessoas um ano depois do incêndio. A tragédia de 27 de janeiro de 2013 matou 242 pessoas.)

A figura de uma árvore invertida é o melhor exemplo que o pneumologista Hugo Oliveira encontra para desenhar o pulmão dos feridos. Segundo ele, além dos 90 casos mais graves, principalmente de jovens que estiveram internados em Centros de Tratamento Intensivo, 48 outros sobreviventes continuam a frequentar seu consultório no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
É lá que o broncoscópio, um equipamento usado para examinar o órgão, entra em ação. Pelo menos uma vez por mês, os sobreviventes passam pela avaliação usando a tecnologia que permite realizar exames e enxergar as ramificações do pulmão.

"Usamos o broncoscópio flexível para o tratamento. Através do nariz ou boca, ele consegue visualizar as vias aéreas e os brônquios do pulmão. Em um primeiro momento usamos uma substância para soltar a fuligem que se aglomerou nos brônquios", explica Oliveira ao G1, reiterando que o procedimento chegou a ser realizado até oito vezes no mesmo dia em um único paciente.

Ao lado de sua equipe, o gaúcho se tornou referência no tratamento dos feridos no incêndio. Pela experiência inédita, teve de buscar informações com colegas médicos argentinos. O incêndio em uma boate de Buenos Aires na década de 1990 serviu de base para as primeiras decisões médicas.
Segundo o médico, o pulmão possui 21 divisões, e o broncoscópio não consegue chegar nas áreas mais profundas. "A gente chega até a sétima, oitava divisão. Depois disso os brônquios vão ficando cada vez menores. Para liberar isso [a fuligem] é preciso fazer fisioterapia, usar remédios e ir eliminando ao longo dos meses", pontua o médico.

Imagens mostram o pulmão de um dos feridos no incêndio dias depois da tragédia e depois da limpeza realizada com o broncoscópio (Foto: Reprodução/RBS TV)

Um estudo que consolida e analisa os dados verificados no tratamento dos sobreviventes durante o último ano será publicado nos próximos meses. O prognóstico dos pacientes ainda é incerto. A única certeza é o acordo firmado entre o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) e o Ministério da Saúde com vigência de cinco anos para os tratamentos. "Em relação ao dano futuro ainda existe pouco conhecimento. Estamos usando a experiência do 11 de Setembro, mas lá não foi incêndio", reitera o médico Oliveira.

Apesar de atender os pacientes no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, é o Hospital Universitário de Santa Maria que centraliza a maior parte do tratamento. É ali, na ala da fisioterapia, que sobreviventes se encontram três noites por semana. Em maio, foi criado o Centro Integrado de Atendimento a Vítimas de Acidente (Ciava), que conta com uma equipe fixa de fisioterapeutas, um terapeuta ocupacional e uma psicóloga.

Hospital Universitário de Santa Maria abriga Centro Intensivo de Atendimento a Vítimas de Acidentes (Foto: Luiza Carneiro/G1)

O local realiza atendimento aos queimados e pessoas com problemas nas vias aéreas. São 10 consultas por dia. Passado um ano de atuação, o centro soma 4.329 atendimentos realizados até o dia 31 de dezembro.
Mesmo após um ano, pacientes ainda expelem secreção da fumaça tóxica que causou as mortes na Kiss. A rotina do Ciava se repete quase diariamente: são 42 pessoas que frequentam o local. E é através das atividades lá realizadas que os pacientes vêm tirando ao longo dos últimos 12 meses a secreção que ainda segue nos pulmões.

A sessão começa quase sempre com a nebulização. Depois vem a higiene brônquica, uma limpeza nas partes mais danificadas do pulmão, seguida pelo treino respiratório. Para os pacientes mais saudáveis, as fisioterapeutas recomendam 20 minutos de esteira. Para os queimados, massagem nas cicatrizes e exercícios para fortalecer a musculatura.

Foi ali no HUSM que Paula Fensterseifer, de 23 anos, percebeu que o pulmão estava em parte comprometido. Até então a estudante acreditava que cortes no pé devido ao tumulto e os pisões que levou na casa noturna seriam as únicas cicatrizes. "Escutei o pulmão dela e percebi que não estava ventilando", explica a fisioterapeuta Anna Ouriques, que trata a paciente.


Bárbara (E, na foto) reatou com o namorado após a tragédia e agora comemora gravidez ao lado da fisioterapeuta Silvia Serafim (Foto: Luiza Carneiro/G1)

Em outra sala menor, em uma maca, Bárbara Felipeto, de 24 anos, costumava adicionar aos exercícios respiratórios atividades para retomar a memória. Logo após a tragédia ela perdeu o foco, se sentia cansada, não conseguia se concentrar e esquecia facilmente das conversas. A estudante de tecnologia em agronegócios já está afastada da faculdade há um ano.

"Fiquei com um trauma bem grande. Lembro o que aconteceu e fico triste. Nunca pensei que iria estar em coma em um hospital", fala Bárbara, que ficou internada 15 dias em Porto Alegre por conta da fumaça tóxica.

Apesar do trauma que ainda luta para superar, a tragédia promoveu a reaproximação de um amor antigo. Na noite do incêndio, fazia pouco mais de um mês que Bárbara havia terminado um relacionamento de seis anos. Depois do incêndio, ela reatou com o namorado Jaian Schirmer, de 26 anos. Os dois passaram a morar juntos e estão esperando um bebê.

"Quando meu namorado soube que eu estava internada, foi para Porto Alegre. Mas voltamos mesmo em junho, julho. Aí fomos morar juntos", conta a jovem, sem esconder o sorriso. "A gravidez não foi planejada, mas desde que descobri foi um alívio para a minha cabeça. Fico pensando no bebê, nas roupas, em como vai ser."

De acordo com a fisioterapeuta Ana Lúcia Cervi Prado, coordenadora da fisioterapia do HUSM, o tratamento de Bárbara foi readequado para a gestação. Além da rotina de fisioterapeutas, pneumologistas, psiquiatras e neurologistas, a jovem agora frequenta também o ginecologista para o pré-natal. "Posso ter até parto normal", comemora.

Centro concentra atendimentos e até remédios para os sobreviventes
O Ciava foi formalizado quase quatro meses após a tragédia da boate Kiss. Antes disso, voluntários realizavam os atendimentos desde 18 de fevereiro. A Força Nacional do SUS esteve na cidade nos primeiros dias após a tragédia e auxiliou no processo de implantação do centro.

"A Força atuou aqui nos primeiros dias, depois esteve aqui durante os mutirões [até maio de 2013] e agora, como é do papel da própria Força, faz conosco as avaliações do acompanhamento dos sobreviventes", pontua a coordenadora do Ciava, enfermeira Soeli Guerra.
Seria muito presunçoso dizer que não tivemos problemas ao longo deste um ano"
Soeli Guerra, coordenadora do Ciava

Passado um ano de atuação, o centro soma mais de 4 mil atendimentos, todos pelo Sistema Único de Saúde. O banco de remédios disponível para os envolvidos no incêndio também se localiza ali, apesar de ser uma atribuição do governo do estado.

Para Soeli, a necessidade de agilidade foi um dos fatores principais para centralizar a distribuição, evitando que os pacientes precisassem se descolar até a 4ª Coordenadoria Regional da Saúde, como os pacientes comuns do SUS normalmente fazem no município.

"Seria muito presunçoso dizer que não tivemos problemas ao longo deste um ano. A liberação de medicamentos segue um fluxo previsto em lei e isso foi revisto. Criamos um especial para liberar mais rapidamente. Junho, julho e agosto foram meses críticos disso", relembra Soeli, sobre as reclamações de sobreviventes para conseguir as medicações.

"Outra queixa era a avaliação dos queimados em Porto Alegre. Trouxemos para Santa Maria e isso minimizou bastante. E também, a partir de julho, a Associação de Familiares e Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) se inseriu e começou a ser a interlocutora dos que precisavam de atendimento. Eles fazem parte do núcleo gestor do Ciava", diz.


Uma casa na área central de Santa Maria é a referência do Acolhimento psicossocial para envolvidos na tragédia (Foto: Luiza Carneiro/ G1)

Além do atendimento físico, familiares e sobreviventes também têm acompanhamento psicossocial desde a tragédia. O Acolhimento, como é chamada a casa localizada no Centro de Santa Maria, realizou cerca de 4 mil atendimentos individuais ao longo de 2013.

De acordo com o psiquiatra e coordenador do projeto, Volnei Dassoler, a tragédia apresenta maior potencial traumático por envolver jovens.
"Não quer dizer que as pessoas não retornaram à rotina da sua vida, como os estudos, o trabalho, os passeios, mas isso não significa que está sendo feito tranquilamente. O luto não pode ser pensado como um processo com tempo pré-determinado", explica Dassoler.

O serviço disponibilizado pela prefeitura municipal também segue o termo de vigência de cinco anos. Das 900 pessoas com registro em prontuário no ano de 2013, aproximadamente 200 seguem com algum tipo de acompanhamento, normalmente realizado em sessões de terapia individuais.
"A partir do mês de agosto, propomos a realização de algumas oficinas como artesanato, cinema e relaxamento. Posteriormente, avaliamos que essas formas de expressão e tratamento não deveriam estar concentradas em um serviço de saúde, mas que deveriam ser buscadas na extensão já instalada da cidade", disse Dassoler.

Outro serviço disponibilizado pelo Acolhimento é a equipe de psicólogos e assistentes sociais, que acompanha os familiares e sobreviventes nas audiências do processo criminal que tramita na justiça local.

Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do Sul, ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. A tragédia matou 242 pessoas, sendo a maioria por asfixia, e deixou mais de 630 feridos.

O fogo teve início durante uma apresentação da banda Gurizada Fandangueira e se espalhou rapidamente pela casa noturna, localizada na Rua dos Andradas, 1.925.

O local tinha capacidade para 691 pessoas, mas a suspeita é que mais de 800 estivessem no interior do estabelecimento. Os principais fatores que contribuíram para a tragédia, segundo a polícia, são: o material empregado para isolamento acústico (espuma irregular), uso de sinalizador em ambiente fechado, saída única, indício de superlotação, falhas no extintor e exaustão de ar inadequada.

Ainda estão em andamento dois processos criminais contra oito réus, sendo quatro por homicídio doloso (quando há intenção de matar) e tentativa de homicídio, e os outros quatro por falso testemunho e fraude processual. Os trabalhos estão sendo conduzidos pelo juiz Ulysses Fonseca Louzada. Sete bombeiros também estão respondendo pelo incêndio na Justiça Militar. O número inicial era oito, mas um deles fez acordo e deixou de ser réu.

Entre as pessoas que respondem por homicídio doloso (com intenção), na modalidade de "dolo eventual", estão os sócios da boate Kiss, Elissandro Spohr (Kiko) e Mauro Hoffmann, além de dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o funcionário Luciano Bonilha Leão. Os quatro chegaram a ser presos nos dias seguintes ao incêndio, mas a Justiça concedeu liberdade provisória aos quatro em maio do ano passado. Entre os bombeiros investigados, está Moisés da Silva Fuchs, que exerceu a função de comandante do 4° Comando Regional de Bombeiros (CRB) de Santa Maria.

Atualmente, a Justiça está em fase de recolher depoimentos dos sobreviventes da tragédia. O próximo passo será ouvir testemunhas. Os réus serão os últimos a falar sobre o incêndio ao juiz. Quando essa fase for finalizada, Louzada deverá fazer a pronúncia, que é considerada uma etapa intermediária do processo.

Se o magistrado "pronunciar" o réu, ele vai a júri (a pronúncia é a ordem para ir a júri). Outra possibilidade é a chamada desclassificação, quando o juiz não manda o réu para júri, mas reconhece que houve algum tipo de crime. Nesse caso, a causa será julgada sem júri. Também existe a chance de absolvição sumária dos réus. Em todas as hipóteses, cabe recurso.

No âmbito das investigações, três delas estão sendo conduzidas pela Polícia Civil. Além dos documentos sobre as licenças concedidas à boate Kiss, um inquérito apura as atividades da empresa Hidramix, responsável pela instalação de barras antipânico na boate, e outro analisa uma suposta fraude no documento de estudo de impacto na vizinhança do prédio onde ficava a casa noturna. O Ministério Público, por sua vez, investiga as responsabilidades de servidores municipais na tragédia.

fonte:http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/tragedia-santa-maria-boate-kiss-um-ano-depois/noticia/2014/01/apos-um-ano-90-sobreviventes-da-kiss-ainda-preocupam-medicos.html
Luiza Carneiro e Felipe Truda - Do G1 RS, em Santa Maria
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